KaliAproximadamente 4 min de leitura

Desde os primórdios da humanidade, os símbolos têm servido como pontes entre o visível e o invisível, entre o racional e o sagrado. Um símbolo não é apenas uma imagem ou palavra, ele é uma porta que se abre para significados mais profundos, muitas vezes intuitivos, que falam à alma antes mesmo de serem compreendidos pela mente. Entre os símbolos mais desafiadores e fascinantes do imaginário espiritual está a figura de Kali, a deusa hindu da destruição, do tempo e da transformação.
Os símbolos são essenciais na construção da cultura. Eles traduzem experiências universais, tais como nascimento, morte, renovação, em imagens compreensíveis. Em cada civilização, encontramos símbolos que representam o medo, a esperança, o amor, o fim e o começo. Kali é um desses símbolos, e embora pertença ao panteão hindu, sua essência toca camadas simbólicas presentes em diversas tradições do mundo. Ela não é apenas uma deusa, mas uma expressão poderosa dos ciclos naturais que regem a vida. Tudo que nasce, um dia deve morrer, e tudo que morre pode renascer.
Na Índia, Kali é representada com pele escura ou azul, cabelos soltos e desgrenhados, olhos flamejantes e uma língua protuberante. Ela dança sobre o corpo imóvel de Shiva, seu consorte, e carrega em suas mãos armas e uma cabeça cortada. Esse conjunto de imagens pode parecer assustador à primeira vista, mas guarda uma simbologia profunda. Kali é a destruição, sim, mas não a destruição cega ou maligna. Ela é a destruição do ego, das ilusões, do tempo ilusório que aprisiona o ser humano em rotinas vazias. Seu nome vem da raiz sânscrita kala, que significa “tempo”. Assim, Kali não é apenas destruidora, ela é o próprio tempo que consome tudo e que, ao fazê-lo, purifica e renova.
Nos dicionários de símbolos, Kali aparece como arquétipo da Mãe Negra, um símbolo presente em muitas culturas. Na tradição africana iorubá, por exemplo, Oyá (ou Iansã) compartilha traços semelhantes, ambas regem os ventos, as tempestades e a morte, mas também a transformação e o renascimento. Na alquimia ocidental, Kali ecoa no símbolo da “nigredo”, a fase negra da transmutação, onde a matéria precisa ser decomposta antes de se transformar em ouro. O mesmo princípio aparece nos contos e mitos em que a heroína ou o herói precisa “morrer para o mundo” antes de renascer para uma nova etapa de consciência.
Na psicologia analítica de Carl Jung1, Kali pode ser compreendida como uma manifestação do arquétipo da Sombra, ou seja, aquilo que precisamos enfrentar em nós mesmos para alcançar a totalidade. Ao encarar a deusa com sinceridade, o indivíduo aprende que a destruição, embora dolorosa, é um passo necessário para o florescimento interior. Em diversas tradições xamânicas, a figura feminina que mata para curar também aparece. O simbolismo é o mesmo, para que algo novo surja, o velho precisa ser dissolvido.
A presença de Kali, portanto, nos convida a refletir sobre nossa relação com o fim das coisas. Vivemos em uma cultura que teme o envelhecimento, a perda, o silêncio e tudo aquilo que lembra que somos finitos. Kali rompe com essa visão. Ela nos mostra que o tempo não é inimigo, mas um mestre. E que toda morte traz consigo a semente de um novo começo.
Concluindo, a simbologia de Kali nos fala de forma visceral e honesta sobre a impermanência da vida. Em seu aspecto temível, ela esconde uma sabedoria antiga, a verdadeira libertação vem quando abandonamos o apego ao que é passageiro e abraçamos o mistério da mudança. Como todos os grandes símbolos, Kali não exige que a entendamos, mas que a escutemos. Porque, no fundo, ela é uma espelho da própria alma humana em busca de transformação.
1 – Carl Gustav Jung (1875–1961) foi médico psiquiatra suíço, fundador da Psicologia Analítica. Discípulo dissidente de Freud, propôs uma abordagem simbólica e profunda do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos, inconsciente coletivo, persona, sombra e processo de individuação. Jung enxergava a psique como um sistema dinâmico em busca de totalidade, articulando ciência, filosofia, religião e mitologia. Sua obra permanece central nos estudos da alma humana, influenciando não apenas a psicanálise, mas também a arte, a literatura e a espiritualidade contemporânea.