Diabo ou SatanásAproximadamente 3 min de leitura

Grande parte da complexidade simbólica do Diabo está ligada às traduções antigas das Escrituras. No hebraico, a palavra satan significa “adversário” ou “acusador”, sendo usada em contextos distintos, muitas vezes para descrever simplesmente um opositor humano ou mesmo um agente divino encarregado de testar a fé das pessoas. Quando a Bíblia Hebraica foi traduzida para o grego, o termo tornou-se diabolos, que significa “aquele que divide ou calunia”. Com o tempo, principalmente por influência da tradução para o latim (diabolus), essa palavra passou a representar uma entidade personificada do mal, distinta e oposta a Deus.
Essa transição de significado indo de “adversário” a “ser maligno absoluto” influenciou profundamente o imaginário cristão. O que antes era um papel funcional dentro da narrativa bíblica, sendo o acusador em um tribunal divino, transformou-se no arquétipo da rebeldia cósmica e da personificação do mal.
A imagem do Diabo não pertence exclusivamente à tradição cristã. Em muitas culturas, símbolos semelhantes aparecem, entidades que representam a desordem, a tentação ou o caos. No zoroastrismo, encontramos Angra Mainyu, espírito maligno que se opõe ao deus criador Ahura Mazda. Na mitologia grega, Hades foi erroneamente associado ao mal, embora sua função fosse apenas governar o mundo dos mortos. Em tradições africanas, como em algumas versões do culto a Exu, a confusão com o “diabo” também foi resultado de choques culturais e interpretações coloniais.
O Diabo cristão absorveu características de várias dessas figuras, ganhando chifres, cauda e tridente, símbolos herdados de divindades pagãs, como o deus grego Pan, originalmente associado à fertilidade e à natureza selvagem. Essa fusão iconográfica reforçou a ideia de um inimigo da ordem divina e do bem supremo.
O símbolo do Diabo também revela aspectos profundos da psique humana. Ele representa, em muitos sentidos, o “lado sombra”, impulsos, desejos e medos que a cultura dominante tenta reprimir. A figura do tentador mostra não apenas o que tememos, mas também o que desejamos secretamente. Carl Jung1, ao tratar do inconsciente coletivo, apontava que essas figuras sombrias são necessárias para o equilíbrio psíquico, pois nos obrigam a confrontar o que está escondido em nós.
Na contemporaneidade, a imagem do Diabo se transformou novamente. Além de ser um arquétipo religioso, ele passou a ser um ícone cultural, presente em obras literárias, filmes, músicas e até movimentos de contestação social, como o Satanismo moderno, que, em muitos casos, não cultua uma entidade maligna, mas defende a liberdade individual e o questionamento das autoridades.
A simbologia do Diabo ou Satanás é resultado de um longo processo de tradução, adaptação e reinterpretação cultural. De um simples “adversário” no texto hebraico a uma entidade temida como encarnação do mal, sua imagem atravessou culturas e épocas, ganhando novos sentidos e funções. Mais do que uma figura externa, o Diabo revela nossas próprias contradições e medos, sendo um convite simbólico a refletir sobre os limites entre luz e sombra dentro de nós mesmos.
1 – Carl Gustav Jung (1875–1961) foi médico psiquiatra suíço, fundador da Psicologia Analítica. Discípulo dissidente de Freud, propôs uma abordagem simbólica e profunda do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos, inconsciente coletivo, persona, sombra e processo de individuação. Jung enxergava a psique como um sistema dinâmico em busca de totalidade, articulando ciência, filosofia, religião e mitologia. Sua obra permanece central nos estudos da alma humana, influenciando não apenas a psicanálise, mas também a arte, a literatura e a espiritualidade contemporânea.