AkuandubaAproximadamente 4 min de leitura

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Akuanduba, divindade dos índios Araras da bacia do Xingu, ao tocar sua flauta sagrada restabelece a harmonia quando o mundo cai no caos. Essa imagem concentra, em uma só figura, ideias sobre música, poder regulador, lei cósmica e a íntima relação entre som e ordem social.

O símbolo de Akuanduba funciona em diversos níveis. No mais imediato, ele é o músico divino, a personificação da música como força restauradora. Em seguida, aparece o aspecto ético-mítico, tradições que o citam contam que, por causa da desobediência humana, partes do mundo foram lançadas nas águas e os sobreviventes tiveram de recomeçar, a flauta de Akuanduba, então, é também instrumento de correção e reconstituição da vida após uma ruptura. Por fim, há um nível social, a figura do flautista que organiza dança, cerimonial e convivência sugere que a música é tecnologia simbólica para manter laços e regras dentro do grupo.

Dicionários de símbolos e estudos comparados apontam repetidamente a presença do músico sagrado em várias culturas. Entre os povos indígenas brasileiros, flautas e sopros são frequentemente associados a rituais de cura, invocação e mediação entre mundos, em outras tradições do planeta, o som (da flauta, do acorde, do canto) é também linguagem do cosmos. Pense no flautista divino de Apolo na Grécia, nos sopros sagrados das flautas xamânicas da Ásia ou nos cantos que reconstroem o mundo em mitos africanos. O que muda são os detalhes locais (contexto ritual, técnica do instrumento, mitos específicos), mas a matriz simbólica é similar, som igual a ordenação. Esta recorrência reforça a interpretação de Akuanduba como um símbolo arquetípico, um modo humano de imaginar que a harmonia social e cósmica pode ser estabelecida por meios sonoros.

Dicionários de símbolos costumam listar várias “vertentes”, por exemplo, a ontológica, onde o símbolo funciona como ponte entre humano e divino, o funcional, onde o símbolo atua como regulador social, a metafórica, onde o símbolo atua como representação de estados interiores, e material, onde o símbolo está ligado a objetos concretos, como a flauta.

Aplicando essas vertentes a Akuanduba vemos:

1 – Ontologicamente: A flauta permite a comunicação entre esferas;
2 – Funcionalmente: Ela impõe ordem e regras;
3 – Metaforicamente: Sua melodia sugere equilíbrio emocional e moral;
4 – Materialmente: A própria flauta, objeto sagrado, é talismã de legitimidade ritual.

Quando observamos relatos sobre os Araras da bacia do Xingu, seu modo de vida, cosmologias e classificações sociocosmológicas, entendemos que figuras como Akuanduba não vivem isoladas como “contos” desmembrados da cultura, fazem parte de um sistema de worldbuilding, ou seja, é o processo de construir um mundo fictício completo, detalhando sua geografia, história, ecologia, culturas, e sistemas sociais, mágicos ou tecnológicos. Em algumas descrições etnográficas e análises históricas, Akuanduba aparece relacionado a mitos fundadores que distinguem “o dentro” do “fora” do mundo e explicam por que certos grupos são como são, isso dá à divindade um papel central tanto na explicação do passado quanto na manutenção do presente.

Hoje, em um mundo marcado por rupturas culturais e perda de saberes tradicionais, Akuanduba lembra algo simples e profundo: Ritmos, melodias e rituais não são luxos estéticos, são tecnologias simbólicas que sustentam a vida comum. Compreender esse mito ajuda-nos a ler outras culturas com menos etnocentrismo e mais sensibilidade para a função social dos símbolos. Além disso, a imagem do flautista restaurador oferece uma metáfora potente para práticas terapêuticas, musicais e comunitárias que buscam restabelecer vínculos onde houve fragmentação.

Akuanduba não é só um personagem de um conto amazônico, é um nó simbólico que articula música, ordem, moral e cosmologia. Ao olhar para ele pelas lentes das vertentes dos dicionários de símbolos, passando por ontológica, funcional, metafórica e material, conseguimos enxergar como um único mito concentra significados que reverberam em muitas culturas. E, como todo símbolo vivo, Akuanduba continua a ensinar que a harmonia do mundo não é automática, ela exige ritmos que saibamos ouvir e instrumentos que saibamos tocar.

Valter Cichini Jr:.

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