Cabra-CabriolaAproximadamente 5 min de leitura

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A Cabra-Cabriola surge nas vozes dos adultos como uma sombra que ronda o quarto das crianças, criatura meio cabra, meio homem, às vezes com traços caninos, cuja tradição se estende de Portugal ao Nordeste brasileiro. Nas versões mais comuns, ela é um papa-meninos, entra pelas janelas, imita vozes, come ou sequestra os que não obedecem. Essa origem oral tinta bem o seu primeiro papel simbólico, era uma figura mítica usada para gerir o medo e regular o comportamento infantil.

Entendida como símbolo, a Cabra-Cabriola reúne camadas que dialogam entre si. Em primeiro lugar, funciona como um “bicho-papão” local, um agente externo que materializa o temor e a disciplina. Ao transformar uma norma social, a de obedecer aos pais, em ameaça concreta, a devoração pelo monstro, a cultura cria um atalho emocional, o medo, que reforça limites morais sem necessidade de argumentos racionais. Esse mecanismo aparece em muitas culturas, quando o medo é personificado, a norma ganha peso imediato.

Numa segunda camada, a morfologia caprina traz um conjunto rico de significados simbólicos. Historicamente o bode e a cabra alternam entre representações de fertilidade, força vital e, em outra face, de luxúria, desregramento e figuração do “pecador”. No cristianismo e no imaginário popular europeu, a imagem caprina acabou por se associar ao demônio, chifres, cascos e comportamentos transgressores, o que reforça a ambivalência da Cabra-Cabriola. Ela é ao mesmo tempo animal da natureza e emblema do perigo moral. Essa ambiguidade permite que o símbolo sirva tanto para explicar o inexplicável quanto para personificar o castigo.

Há ainda uma dimensão psico-social onde a criatura incorpora o que a cultura reprime. Ao misturar traços humanos, caprinos e caninos, a Cabra-Cabriola representa uma fusão do instintivo (o bode), do socialmente proibido (o humano que falha nas normas) e do predador (o cão), formando um arquétipo do “outro punitivo”. Do ponto de vista junguiano1 ou da simbologia comparada, monstros desse tipo habitam o território do Sombra2, aquilo que a comunidade projeta e não quer reconhecer em si mesma e servem para visibilizar limites através do terror imaginado.

Nas versões populares, a Cabra-Cabriola traz ainda traços narrativos que dizem respeito a ritualidade e controle social, canta canções de embalar que ameaçam, imita vozes para entrar nas casas, desaparece com a chegada da luz. Simbolicamente, a luz aqui funciona como antídoto, ela representa a ordem, a vigilância adulta, a proteção religiosa ou comunitária, já a escuridão, por sua vez, é o ambiente propício ao surgimento do medonho e ao triunfo das forças caóticas. Esse contraste luz/escuridão reforça o caráter pedagógico do mito: Comporta-se bem e fique à luz.

Por fim, é importante olhar para o uso social desse símbolo com certa distância crítica. A Cabra-Cabriola exemplifica como o imaginário popular pode naturalizar formas de disciplina baseadas no medo. Eficientes? Talvez, mas também passíveis de gerar culpa, ansiedade e uma relação problemática com a autoridade. Em regimes de educação mais autoritários, a lenda funciona como reforço inconsciente de obediência, em contextos que buscam uma educação mais dialogal, pode ser reinterpretada como vestígio cultural a ser ressignificado, transformando-se em narrativa para discutir limites, proteção e empatia ao invés de apenas pavor. Aqui a função didática do mito pode ser reaproveitada para promover reflexão, e não só obediência.

Em suma, a Cabra-Cabriola é um símbolo multifacetado, ao mesmo tempo criatura folclórica, instrumento de controle moral, condensação de arquétipos (bode/demônio/sombra) e peça de uma tradição oral móvel, que viajou, adaptou-se e permaneceu na memória coletiva para falar de medo, autoridade e formação de sujeitos. Como todo grande símbolo, ela vive em camadas, quanto mais olhamos, mais encontramos tensões entre domesticação e selvageria, punição e proteção, medo e ensino.

 

1 – Carl Gustav Jung (1875–1961) foi médico psiquiatra suíço, fundador da Psicologia Analítica. Discípulo dissidente de Freud, propôs uma abordagem simbólica e profunda do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos, inconsciente coletivo, persona, sombra e processo de individuação. Jung enxergava a psique como um sistema dinâmico em busca de totalidade, articulando ciência, filosofia, religião e mitologia. Sua obra permanece central nos estudos da alma humana, influenciando não apenas a psicanálise, mas também a arte, a literatura e a espiritualidade contemporânea.

2 – A teoria da sombra, formulada por Carl Gustav Jung, descreve os aspectos da personalidade que a consciência rejeita ou reprime, impulsos, lembranças e traços que não se encaixam na imagem que temos de nós mesmos. Esses conteúdos, embora ocultos, continuam a influenciar pensamentos, emoções e comportamentos, surgindo muitas vezes em forma de projeções ou sintomas psíquicos, como a ansiedade. Integrar a sombra não significa “eliminar o negativo”, mas reconhecer e dar lugar a essas partes esquecidas, tornando-se mais inteiro e autêntico.

Valter Cichini Jr:.

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