BoitatáAproximadamente 3 min de leitura

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O Boitatá surge na paisagem simbólica brasileira como uma imagem intensa e ao mesmo tempo simples, uma serpente de fogo que rasga a noite das campinas e das matas. Como símbolo, ela condensa duas forças que se cruzam no imaginário humano, a serpente, associada à terra, ao ciclo de vida e à sabedoria ambivalente, e o fogo, purificador, destruidor e transformador. Essa junção forma um arquétipo que protege a vegetação e pune quem a destrói, criando uma ponte clara entre ética ambiental e cosmologia mítico-ritual.

Etimologicamente e nos nomes populares encontramos a raiz dessa ideia: boitatá (ou mboitatá / mboi-tatá) vem do tupi, com elementos que remetem a “cobra” e “fogo” ou, em leituras alternativas, a “coisa de fogo”. As variações regionais (baitatá, batatá, biatatá, batatão, entre outras) mostram como o símbolo se adapta ao falar local sem perder a imagem central da chama serpentina. Essas diferenças nominais ajudam a mapear a circulação da lenda entre povos indígenas, comunidades rurais e tradições coloniais.

Na prática narrativa, o Boitatá aparece em versões que enfatizam aspectos distintos, ora é um fogo-fátuo que se desloca sobre as campinas, ora é uma cobra protetora que arde em chamas e castiga caçadores, incendiários e destruidores das matas, noutras versões, come olhos de animais e de humanos, um detalhe que associa a criatura à visão e ao saber noturno. A imagem dos “olhos luminosos” é recorrente e funciona como metáfora da vigilância da terra sobre quem a maltrata.

A relação do mito com fenômenos naturais explica parte da sua força simbólica. Observadores coloniais e etnógrafos associaram o Boitatá ao “fogo-fátuo”, chamas que surgem em terrenos alagadiços devido à ignição de gases da decomposição, e a interpretações visuais que lembram um rastro luminoso, ondulante como uma serpente. Essa origem “naturalizada” não diminui a dimensão sagrada da lenda, pelo contrário, reforça o sentido de que certos fenômenos naturais foram lidos como sinais e incorporados a regras de convivência como por exemplo não atear fogo, respeitar a mata.

Comparando com outros símbolos universais, o Boitatá integra uma família de seres guardiões ligados ao fogo e à serpente, figuras presentes em mitologias de diferentes latitudes, tais como serpentes guardiãs de lugares sagrados, dragões de fogo, espíritos protetores dos bosques. No caso brasileiro, a singularidade está na função ecológica atribuída, o mito serve como aviso prático e moral contra incêndios e destruição, funcionando como ferramenta de preservação cultural e ambiental nas comunidades que o transmitiram. Essa função pedagógica faz do Boitatá um símbolo utilitário além do estético.

A plasticidade do Boitatá também aparece na literatura e na cultura popular, escritores e contadores regionais, como João Simões Lopes Neto, e narrativas modernas reelaboraram a figura, ora feminilizando-a, ora transformando-a em lenda de assombração, em cordéis e livros infantis, ela ganha traços lúdicos ou didáticos. Essa circulação contínua mantém o símbolo vivo e capaz de novas ressonâncias, por exemplo, em discussões sobre conservação, identidades regionais e reconexão com saberes indígenas.

Em síntese o Boitatá funciona como símbolo complexo e direto ao mesmo tempo. Ele articula imagem (cobra + fogo), função (protetor da vegetação, punição ao predador/incendiário), origem sensorial (fenômenos luminosos naturais) e moralidade ecológica. Mais do que um personagem folclórico, é um lembrete mítico, uma forma de linguagem cultural que ensina a cuidar do chão. Ler o Boitatá hoje é reconhecer que mitos podem ser práticas de cuidado e que o simbolismo tradicional carrega respostas éticas para problemas contemporâneos, como o fogo fora de controle e a perda de biomas.

Valter Cichini Jr:.

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