CaduceuAproximadamente 9 min de leitura

O Caduceu, símbolo milenar que atravessa culturas e tempos, carrega em sua forma simples uma complexidade de significados que fascina estudiosos e curiosos. Trata-se de um bastão em torno do qual se entrelaçam duas serpentes, cuja parte superior é adornada com asas. Sua imagem, tão reconhecível, esconde camadas de interpretações que variam conforme o contexto histórico e cultural em que é observado.
A origem deste símbolo remonta a tempos inimagináveis, sendo possível encontrar suas primeiras representações na taça do rei Gudea de Lagash, datada de aproximadamente 2.600 anos antes de Cristo. Também nas antigas tábuas de pedra da Índia, conhecidas como nagakals, o Caduceu já marcava presença, demonstrando sua universalidade e importância em diferentes civilizações.
Na mitologia greco-romana, o Caduceu ganhou notoriedade como emblema de Hermes (para os gregos) ou Mercúrio (para os romanos). Conta-se que Mercúrio era filho do poderoso deus Júpiter e atuava como mensageiro de todos os deuses, função que desempenhava com maestria graças à sua agilidade extraordinária, simbolizada pelas asas que adornam seu capacete. O bastão que carregava não era um objeto qualquer, mas sim um presente valioso.
A história deste bastão mágico tem início quando Mercúrio, demonstrando sua astúcia, trocou instrumentos musicais que havia inventado (a lira e a flauta) com Apolo, que possuía o caduceu. Não satisfeito apenas com a troca de objetos, Mercúrio exigiu que Apolo lhe ensinasse segredos de magia, especialmente a arte da adivinhação. Assim, o caduceu passou a representar os atributos de Mercúrio, que se aprofundou tanto nos conhecimentos mágicos que se tornou capaz de prever o destino através do jogo de pedras, semelhante ao jogo de búzios praticado em algumas tradições religiosas.
Com o passar do tempo, Mercúrio ampliou seus poderes. Usando o capacete de Hades, tornava-se invisível, prestando grandes serviços aos outros deuses. Entre seus feitos notáveis está a derrota do temível gigante Hipólito. Tais vitórias transformaram o habilidoso Mercúrio no principal intérprete da vontade divina, tornando-o o mais ocupado entre todos os deuses da mitologia.
O Caduceu, como símbolo, transcende sua associação com Mercúrio. Na interpretação esotérica, está intimamente ligado ao equilíbrio moral, ao caminho de iniciação espiritual e à ascensão da energia kundalini, conceito presente em tradições orientais. As duas serpentes que se entrelaçam no bastão representam forças opostas que, embora contrárias, podem se associar sem se confundir. A serpente da direita, chamada Od, simboliza a vida livremente dirigida, enquanto a da esquerda, Ob, representa a vida fatal. No topo, o globo dourado, denominado Aur, representa a luz equilibrada, a harmonia entre os opostos.
Estas serpentes entrelaçadas também podem ser vistas como uma representação do número oito (8) e do símbolo do infinito (∞) em sua verticalidade. Simbolizam o eterno movimento cósmico, base da regeneração e do infinito. É interessante notar como um símbolo aparentemente simples pode conter tantas camadas de significado, conectando conceitos matemáticos, espirituais e filosóficos.
Na tradição alquímica, segundo Fulcanelli1, o caduceu simboliza o mercúrio filosófico, resultado da absorção poderosa do enxofre metálico pelo mercúrio em estado líquido, uma união que, uma vez realizada, não pode ser desfeita. A serpente, neste contexto, simboliza o mercúrio se apoderando do enxofre metálico, que por sua vez é representado pelo caduceu, o cajado de ouro de Abraão.
Uma curiosa história sobre a origem mítica das duas serpentes mágicas presentes no Caduceu é encontrada na lenda de Tiresias. Segundo a narrativa, Tiresias – um vidente famoso na mitologia grega – encontrou duas cobras copulando e, ao separá-las com seu cajado, foi imediatamente transformado em mulher. Permaneceu nesta forma por sete anos, até que pôde repetir a mesma ação, voltando então à forma masculina. Este mito ilustra o poder transformador do símbolo, capaz de inverter polaridades fundamentais como o masculino e o feminino. O cajado de Tiresias, com as duas serpentes, teria sido posteriormente passado a Hermes.
Na tradição ocultista, o Caduceu possui uma interpretação ainda mais profunda. As serpentes representariam as forças positivas e negativas que se movem pelos chakras e em torno da espinha dorsal (simbolizada pela barra central) até a cabeça, onde se comunicam com a mente através da compreensão, domínio de Mercúrio (representado pelas asas). A barra central representaria a espinha (sushumna), enquanto as serpentes conduziriam as correntes espirituais (pranas) ao longo dos canais de Ida e Pingala, em um padrão de dupla hélice, do chakra presente na base da espinha até a glândula pineal.
Além de seu significado espiritual e mitológico, o Caduceu também ganhou importância em contextos profissionais. É amplamente reconhecido como símbolo do comércio, associação natural considerando que Mercúrio/Hermes era o deus protetor dos comerciantes. Por esta razão, o Caduceu foi adotado como emblema por diversas instituições dedicadas ao estudo e ensino das ciências contábeis. Institutos superiores de comércio no Chile, a Liga de Defesa Comercial “Lideco”, o colégio de contadores, economistas e administradores do México e a escola superior de comércio Carlos Pellegrini de Buenos Aires são apenas alguns exemplos de organizações que utilizam este símbolo em seus logotipos.
No Brasil, a associação entre o Caduceu e a contabilidade tem raízes históricas. Durante séculos, a Contabilidade Comercial foi considerada a ciência mais importante, justificando a adoção de Mercúrio como patrono da profissão. A própria literatura contábil atesta essa predominância – a primeira obra impressa de contabilidade industrial surgiu apenas no início do século XVII – e os locais onde se ensinava a contabilidade eram denominados “Escolas de Comércio”.
Em Portugal, no século XVIII, quando se iniciou o ensino formal da Contabilidade em escolas que formavam os Contadores que viriam para o Brasil, o processo didático era chamado de “Aulas de Comércio”. Esta tradição persistiu, e ainda hoje existem colégios comerciais formando técnicos em Contabilidade. Esta forte associação entre comércio e contabilidade justifica a adoção de Mercúrio como representação simbólica da profissão.
Para o anel do contabilista, adotou-se o caduceu estilizado, composto pelo bastão de Apolo envolvido por duas serpentes e encimado pelo capacete alado de Mercúrio. O que este símbolo evoca para os profissionais da contabilidade é o respeito à tradição e a sugestão de que, assim como o deus Mercúrio, eles possam proteger as riquezas com sua sabedoria. Os contabilistas se veem como representantes modernos de Mercúrio, protegendo o comércio (no sentido amplo de todas as atividades econômicas) com sua orientação, zelo e ética profissional.
Curiosamente, o Caduceu é frequentemente confundido com outro símbolo importante: o Bastão de Esculápio (ou Asclépio), que consiste em um bastão com apenas uma serpente enrolada. Este último é o verdadeiro símbolo da medicina, associado ao deus grego da cura. A confusão entre os dois símbolos é tão comum que muitas organizações médicas utilizam erroneamente o Caduceu como seu emblema.
O equívoco tem origens históricas. O vínculo entre o Caduceu de Hermes e a medicina parece ter surgido por volta do século VII depois de Cristo, quando Hermes era adorado pelos alquimistas, que eram considerados mestres da mistura dos elementos e usavam sua sabedoria para tentar curar quem recorria a seus serviços. No final do século XVI, o estudo da alquimia incluía a medicina, farmácia, química, mineração e metalurgia, fortalecendo esta associação.
Outro fator que contribuiu para esta confusão foi o uso do Caduceu como marca d’água por gráficas que imprimiam textos médicos. Como o deus grego, estas gráficas eram vistas como difusoras das mensagens e do conhecimento. Porém, o erro mais significativo ocorreu em 1902, quando os militares americanos utilizaram o Caduceu para ilustrar o departamento Médico do exército, perpetuando o equívoco que persiste até hoje.
Os romanos utilizavam o caduceu como símbolo do equilíbrio moral e da boa conduta. Para eles, o bastão expressava o poder; as duas serpentes, a sabedoria; e as asas, a diligência – três qualidades essenciais para o exercício de qualquer profissão com excelência. Esta interpretação ressalta valores universais que transcendem culturas e épocas.
O Caduceu também foi representado, durante muito tempo, como símbolo da indústria, na forma de um ramo de oliveira ou de loureiro no qual se enrolavam duas serpentes. Esta versatilidade demonstra como um símbolo pode adaptar-se a diferentes contextos, mantendo sua essência enquanto incorpora novos significados.
Em sua jornada através dos tempos, o Caduceu permanece como um dos símbolos mais poderosos e reconhecíveis da humanidade. Sua forma simples mas carregada de significado continua a inspirar interpretações e a conectar diferentes aspectos da experiência humana – da espiritualidade ao comércio, da mitologia à vida profissional. Como todo grande símbolo, o Caduceu nos convida a olhar além da superfície, a explorar as camadas de significado que se escondem em sua aparente simplicidade.
1 – Fulcanelli (fl. 1920) é o pseudônimo de um misterioso alquimista francês, cuja verdadeira identidade permanece desconhecida até hoje. Autor das obras clássicas da alquimia “O Mistério das Catedrais” (1926) e “As Mansões Filosofais” (1930), Fulcanelli desapareceu em 1926, deixando um legado de conhecimentos herméticos e alquímicos. Seu discípulo, Eugène Canseliet, afirmou tê-lo encontrado anos depois de seu desaparecimento, descrevendo-o como alguém que havia alcançado a transmutação não apenas dos metais, mas do próprio ser. Especula-se que Fulcanelli tenha sido um erudito com profundos conhecimentos em arquitetura, arte, ciência e línguas antigas, capaz de decifrar os símbolos alquímicos ocultos nas catedrais góticas europeias.