LobisomemAproximadamente 4 min de leitura

O mito do Lobisomem, o homem amaldiçoado que se transforma em lobo nas noites de Lua Cheia, é um dos mais potentes e persistentes símbolos desse universo, pois toca diretamente no conflito eterno entre a natureza instintiva (o Lobo) e a razão (o Homem).
O fio condutor da lenda do Lobisomem, ou Licantropia, do grego lykos, lobo, e anthropos, homem, remonta à Mitologia Grega. Sua origem mais citada está ligada à figura do rei Licaão da Arcádia.
Conta a lenda que Licaão era um rei cruel que testou a onisciência de Zeus, o deus supremo. Desconfiado da divindade, o rei serviu-lhe a carne de um sacrifício humano, ou, em algumas versões, as vísceras de seu próprio filho. Indignado com tamanha profanação e canibalismo, Zeus puniu Licaão de forma definitiva, transformando-o num lobo feroz. Essa metamorfose não era apenas física, mas uma condenação que revelava e perpetuava a natureza bestial que o rei já possuía em seu coração.
Essa origem grega estabeleceu o arquétipo do Lobisomem como um ser que é transformado por uma maldição divina ou por um ato de transgressão moral grave. A figura do lobo, nesse contexto, representa o lado sombrio, a ferocidade descontrolada e o instinto predatório que a civilização tenta reprimir.
A licantropia não é exclusiva da Grécia, mas um conceito antropozoomórfico universal. Em diversas culturas, o lobo assume papéis duais:
Na Europa Medieval, sob a influência do cristianismo, o lobo passou a ser associado ao mal, ao demônio e à heresia, reforçando a ideia de que o Lobisomem era um ser possuído ou que havia feito um pacto satânico. A transformação, frequentemente ligada à Lua Cheia, simboliza a perda de controle da razão para as forças noturnas e caóticas.
Em outras culturas, estabelecendo um contraste, alguns povos, como os nativos americanos e os nórdicos, com seus Berserkers1 que vestiam peles de lobo, o animal era visto como um totem de coragem, astúcia e poder espiritual. A metamorfose podia ser um ato de poder xamânico ou de herança honrosa, não apenas uma maldição.
A variação do símbolo demonstra como a lenda serve para explicar o inexplicável, surtos de violência, crimes bizarros ou doenças psiquiátricas raras, como a própria licantropia clínica, onde o paciente acredita se transformar em um animal.
A lenda do Lobisomem foi introduzida no Brasil pelos colonizadores portugueses, trazendo consigo o folclore europeu já carregado da dualidade moral e do castigo. No entanto, o mito se adaptou e floresceu no rico caldeirão cultural brasileiro.
A Regra da Sétima Criança, a versão mais popular no folclore brasileiro associa a maldição à ordem de nascimento. Acredita-se que o sétimo filho homem de uma sucessão de filhos do mesmo sexo, geralmente sete filhas seguidas, ou, em outras versões, de uma relação incestuosa, nascerá amaldiçoado. Essa crença reflete o forte apelo à moralidade cristã e ao controle social presentes na cultura colonial.
O Corredor Noturno, onde a manifestação da criatura no Brasil é muitas vezes menos ligada à caça violenta de humanos e mais ao papel de um assustador noturno, que ataca gado, galinhas ou açoitava cachorros para fazê-los uivar. A transformação acontece em encruzilhadas, locais de simbolismo mágico e ponto de encontro de forças ocultas, nas noites de terça ou sexta-feira de Lua Cheia, voltando à forma humana ao amanhecer.
Existem algumas variações, cito o folclorista Luís da Câmara Cascudo que observou que a miscigenação cultural do Brasil permitiu que o Lobisomem dialogasse com mitos indígenas e africanos que também apresentavam poderes de transformação, tais como homens que viram pássaros, tatus ou mesmo o Capelobo, uma criatura híbrida do folclore indígena com traços zoomórficos da fauna local, um corpo humano e cabeça de tamanduá ou anta/cachorro, caracterizado por emitir gritos assustadores e rondar as matas à noite.
A permanência do Lobisomem no imaginário brasileiro, como atesta a obra de Cascudo, prova a capacidade da lenda de se moldar, mantendo seu núcleo simbólico, o confronto da luz e das trevas, o domínio do instinto sobre a razão e a ameaça do selvagem que reside no humano. O Lobisomem é, em última análise, o espelho da nossa própria dualidade.
1 – Berserkers eram guerreiros de elite da Mitologia Nórdica e da era Viking, famosos por entrarem em um estado de fúria selvagem e incontrolável (berserkergang) nas batalhas. Eles vestiam peles de animais (ursos ou lobos, estes últimos chamados Ulfhednar) e avançavam sem armadura. O seu comportamento animalesco e a fúria que superava a razão humana estabelecem um paralelo simbólico direto com o Lobisomem e a licantropia.




